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A universidade (originalmente uma instituição social) é hoje uma ORGANIZAÇÃO OPERACIONAL

Marilena Chauí em conferência na UERJ:

"A Crise nas Universidades Públicas".

Transcrição da 2ª parte da conferência (autorizada a sua publicação aqui pela autora):

“Desde o seu surgimento no século XII europeu a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público da sua legitimidade e das suas atribuições num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da ideia de autonomia do saber, em face da religião e do Estado, portanto na ideia de um conhecimento guiado pela sua própria lógica por necessidades imanentes eminentes a ele, tanto do ponto de vista da sua invenção ou descoberta, como do ponto de vista da sua transmissão. Por isso mesmo a universidade europeia tornou-se inseparável das ideias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos dos cidadãos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da ideia de democracia e de democratização do saber, seja para realizar essa ideia, seja para opor-se a ela. A instituição universitária não pôde furtar-se à referência, à democracia como ideia reguladora, nem pôde furtar-se a responder afirmativa ou negativamente ao ideal socialista. Hoje porém, a universidade passou a ser encarada como uma organização social, que é o termo que é usado também para o Estado. É o termo neoliberal para as instituições públicas e para o Estado, uma organização social, que significa passar da condição de instituição social a de uma organização social, antes de mais nada, significa pensar uma instituição a partir da ideia e da prática da administração, é que o que ocorre com o Estado, que não é pensado como prática de poder, e é pensado como eficácia administrativa de acordo com as leis do mercado. Como mostrou a Escola de Frankfurt a ideia de administração é inseparável do modo de produção capitalista como produção de equivalentes para o mercado. O capitalismo estabeleceu uma mercadoria como equivalente universal que serve para avaliar o valor de todas as outras mercadorias: o dinheiro, generalizador da troca de equivalentes. A universalização dos equivalentes faz com que tudo seja equivalente a tudo, ou que cada equivalente possa ser considerado homogêneo a qualquer outro. Essa homogeneidade permite o aparecimento da ideia e da prática da administração como um conjunto de regras e princípios formais idênticos para todas as instituições sociais, do Estado à escola. Assim, não há diferença entre administrar uma montadora de veículos, um shopping center, um Estado e uma universidade. É a administração que, portanto, transforma uma instituição social numa organização. Ora, uma organização difere de uma instituição porque ela se define por uma outra prática social, ou seja, pela sua instrumentalidade. E essa instrumentalidade está referida a um conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Ela não está referida às ações articuladas às ideias de reconhecimento interno e externo, legitimidade interna e externa, que são os focos da instituição social e da instituição universitária, mas ela está marcada por operações que são definidas como estratégias, baseadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar um objetivo particular que é definido. Uma organização é regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito, que são os termos que se passa a aplicar ao Estado também, e que se aplica a nós. Não lhe compete discutir ou questionar a sua própria existência, a sua função, o seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é uma discussão crucial, é, para uma organização, um dado de fato. A organização sabe, ou julga saber, por que ela existe, para que ela existe e aonde ela existe. A instituição social aspira pela universalidade. A organização sabe que a sua eficácia e o seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e a sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares, ou seja, a instituição se percebe inserida na divisão social e política, e busca definir uma universalidade quer imaginária, quer desejável, que lhe permita responder às contradições que são impostas pela divisão social e pela divisão política. Ao contrário, a organização pretende gerir o seu espaço e seu tempo particulares, aceitando como um dado bruto a sua inserção num dos polos da divisão social e política, e o seu alvo não é responder às contradições, e sim vencer a competição com seus supostos iguais. Numa palavra a instituição está orientada para o espaço público, a organização está determinada pela privatização dos conhecimentos. Como foi possível passar da ideia da universidade como instituição social à sua definição como uma organização prestadora de serviços? A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe, e as formas da luta de classes, de tal maneira que a sociedade aparece como uma rede móvel instável e efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares. As ações naturais e as ações humanas se tornam abstratamente um ambiente, ou meio ambiente instável e fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material. Por isso a permanência de uma organização depende muito pouco da sua estrutura interna, e muito mais de sua capacidade para se adaptar velozmente às mudanças rápidas da superfície do meio ambiente donde o interesse que uma organização traz pela ideia de flexibilidade. A flexibilidade indica a capacidade adaptativa às mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo, ela não alcança a ordem social, a ordem simbólica, onde está a universidade, ela faz parte do mundo animal, a organização, ou seja, isso tudo onde nós estamos é o meio animal, sem o charme. No Brasil a passagem da universidade na condição de instituição a de organização inseriu-se na mudança geral da sociedade sob os efeitos do neoliberalismo, portanto, pelo encolhimento do espaço público do poder e dos direitos e o alargamento do espaço privado e dos interesses de mercado. Essa mudança, iniciada com a ditadura, consolidada nos anos 90 com os governos de Fernando Henrique Cardoso, retorna agora, embora os governos de Lula e Dilma tenham tentado recuperar o sentido da universidade pública como instituição social, entretanto o processo da sua transformação numa organização já havia sido consolidado pelos próprios dirigentes universitários que impuseram como se fosse um movimento natural e uma necessidade histórica da sociedade. O que eu quero dizer é que mesmo que se tenha lutado durante alguns anos contra esse modelo, ele se implantou porque os dirigentes dentro da universidade queriam que ela fosse uma organização flexível, competitiva, eficaz, produtiva. Não veio como uma imposição de fora, foi desejada aqui dentro (da universidade). Então, nós poderíamos dizer que a mudança da universidade pública brasileira ocorreu em três fases sucessivas: a primeira, anterior ao neoliberalismo, e as duas seguintes, já sob o modelo neoliberal. Na primeira fase, durante a ditadura de 64 a 80, ela se tornou a universidade funcional, voltada para a formação rápida de profissionais requisitados como mão de obra altamente qualificada para o mercado de trabalho, adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou os seus currículos, os seus programas e as suas atividades para garantir a inserção profissional dos estudantes no mercado de trabalho, no qual se separava, cada vez mais, a docência e a pesquisa. Ou seja, essa primeira exigência feita pela ditadura desembocou na primeira reforma universitária que foi feita, da qual nós somos ainda herdeiros em muitas coisas, por exemplo, a ideia de créditos, de disciplinas obrigatórias, disciplinas optativas, isso veio da reforma funcional feita pela ditadura. Na segunda fase, durante a Nova República, de 85 a 94, a universidade se transformou em universidade de resultados, isto é, sem preocupação com a qualidade da docência e voltada para a pesquisa em conformidade com as ideias de eficácia, produtividade, competitividade, adotando assim o modelo do mercado para determinar a quantidade e a qualidade das pesquisas. E finalmente, na última fase, de 94 a 2002, e agora novamente, ela se consolidou como universidade operacional, entendida como organização social, e, portanto, voltada para si mesma, enquanto estrutura de gestão e arbitragem de contratos. Como opera a universidade operacional? Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões administrativos inteiramente alheios ao conhecimento, à formação intelectual, à pesquisa, ela está pulverizada em micro organizações que initerruptamente ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho do conhecimento. A universidade operacional opera com o aumento insano das horas trabalhadas, a diminuição do tempo para os mestrados e os doutorados, avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios voltada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde o umbigo se encontra, a universidade operacional opera, e por isso mesmo, não age. Não surpreende então que nesse operar coopere para sua contínua desmoralização pública e a sua contínua degradação interna. O que se entende por docência e pesquisa na universidade operacional produtiva, flexível, bem administrada, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência ricos em ilustrações, e com duplicatas eletrônicas, graças às novas tecnologias. O recrutamento dos professores costuma ser feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos da sua disciplina e as relações com as outras áreas, o professor é contratado ou por ser, um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado que interessará a alguma empresa, ou por que não tendo vocação para pesquisa, ele aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários precários, que são chamados de flexíveis. A docência é pensada como uma habilitação rápida para graduados que precisam entrar rapidamente no mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se em pouco tempo jovens obsoletos e descartáveis, e em segundo lugar ela é uma correia de transmissão de pesquisadores e o treinamento de novos pesquisadores. A docência se reduz à transmissão e adestramento. Desapareceu a sua marca essencial: a formação. A desvalorização da docência não significou a ... da pesquisa. A fragmentação econômica, social e política imposta pela nova forma do capitalismo, a ela corresponde uma ideologia auto nomeada pós moderna. Essa nomenclatura pretende marcar a ruptura com as ideias clássicas e ilustradas que fizeram a modernidade. Para ser a ideologia, a razão, a verdade, a história, são mitos totalitários, o espaço e o tempo uma sucessão efêmera e volátil de imagens velozes. O espaço se reduz à compressão de lugares e o tempo à compressão de instantes, sem passado e sem futuro, ou seja, nós estamos imersos na realidade virtual que apaga todo contato com espaço e o tempo, enquanto estrutura do mundo e a estrutura da percepção. A subjetividade não é vista como reflexão, e sim como intimidade narcísica, a ser exibida na forma da celebridade. A objetividade não é o conhecimento de que vem do exterior e do diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias em jogos de linguagem e para vitórias numa competição. O que há de ser a pesquisa? Quanto a razão, a verdade, a história, são tidos por mitos, o espaço e o tempo se tornaram superfícies achatadas de sucessão de imagens. O pensamento e a linguagem se tornaram jogos, construções contingentes cujo valor é apenas estratégico. Numa organização, uma pesquisa, com muitas aspas, é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para concepção de um objetivo delimitado. Em outras palavras numa organização uma pesquisa é um survey de problemas, dificuldades e obstáculos para realização de um objetivo, um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos parciais e locais. Pesquisa, numa organização, não é o conhecimento de alguma coisa, não é uma reflexão crítica sobre alguma coisa, é posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização, não há tempo para o pensamento, não há tempo para a reflexão, não há tempo para a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, a sua mudança, a sua superação. É por isso que numa organização se faz mestrado em um ano e doutorado em dois. Numa organização a atividade cognitiva não tem como nem porque realizar-se. Em contrapartida no jogo estratégico da competição de mercado, a organização se mantém e se firma, se for capaz de procurar áreas e problemas, dificuldades e obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro problemas, sobre os quais o controle parece cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevivência da organização se torna real e propõe a especialização como estratégia principal, e ele entende como pesquisa a delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. Eu vou lhes dar um exemplo, no Instituto Politécnico da USP, que é a Escola de Engenharia, uma moça fez uma tese de doutorado cujo objeto era: quais são os percursos mais racionais e mais rápidos para os caminhões de distribuição da Coca-Cola? Porque numa organização é isso que você faz, você não faz pesquisa, você faz survey de problemas que precisam de uma solução eficaz, flexível, rápida, produtiva, etc... É isso que você faz. Você pensa a universidade como uma organização, o que vira a pesquisa? A pesquisa vira isso. Ela deixa de ser conhecimento, indagação, reflexão, crítica, inovação, ela se torna a solução estratégica para um problema delimitado que precisa de uma solução flexível, produtiva. É isso. Então, em suma, que por pesquisa nós entendermos a investigação que nos leva à interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção, criação, se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem, para pensar e dizer o que ainda não foi pensado, nem foi dito. Se por pesquisa nós entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscita uma interrogação e a busca, que por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então é evidente que não pode haver pesquisa numa universidade operacional. O paradoxo consiste em que a universidade é o lugar onde todas as coisas se transformam em objeto de conhecimento, não consegue colocar-se a si mesma como objeto de seu conhecimento e inventar os procedimentos para uma pesquisa a respeito de si mesma. Diante da universidade, os cientistas e pesquisadores parecem tomados pela ignorância e pela perplexidade, como se estivesse diante de um fenômeno opaco e incompreensível. Como consequência a universidade não parece capaz de criar os seus próprios indicadores e passa a usar um indicador que tem sentido nas empresas, mas que não podem ter qualquer sentido para a docência e para a pesquisa, que critério é esse? A produtividade que é própria das organizações. Como consequência os resultados da avaliação tem sido: 1) com relação ao auto conhecimento da universidade, quase nada é conseguido na medida em que no lugar de uma interpretação de dados qualitativos e quantitativos propostos pela universidade, a avaliação oferece um catálogo ao qual é acrescentado um conjunto de conceitos abstratos: bom, sofrível, regular, mal, como se um catálogo de atividades oferecesse as informações necessárias para uma interpretação e permitisse que essa última fizesse uma auto avaliação da universidade, os relatórios obtidos não se distinguem de listas telefônicas e com menos utilidade do que essas. Eu costumo dizer que o Lattes é o seguinte: eu cuspo de manhã, registro no Lattes, eu soluço de tarde, registro no Lattes, e eu vomito de noite, e registro no Lattes. É isso o Lattes. O Lattes não é coisa nenhuma, porque o critério de formulação do Lattes não foi o critério para uma instituição universitária, e sim para uma organização social, de mercado. E finalmente, com relação à especificidade da ação universitária. Qual é a especificidade? Qual é o bem mais precioso da universidade? Ser uma instituição social constituída por diferenças internas que correspondem às diferenças sociais, às divisões sociais, às diferenças dos seus sujeitos e dos seus objetos de trabalho, cada qual com uma lógica própria de docência, de pesquisa e de inserção no mundo. Ao contrário das empresas, que por força da lógica do mercado operam como entidades homogêneas, para as quais os mesmos padrões de qualidade, velocidade de produção, velocidade da informação, eficiência na distribuição das tarefas de organização da planta industrial, modernização dos recursos, informatização e conexão com o sistema mundial de comunicação são os padrões. No caso da universidade não são esses os padrões, além dos critérios não poderem ser homogêneos, não poderem ser os mesmos da produção industrial e da prestação de serviços pós industrial, peculiaridade e riqueza da instituição universitária estão justamente na ausência de homogeneidade, pois os seus sujeitos, os seus objetos de trabalho são diferentes, regidos por lógicas, práticas e finalidades diferentes. As avaliações em curso abandonam esse bem e essa especificidade da universidade, e em lugar de valorizar as diferenças, a heterogeneidade, as avaliações consideram que as diferenças e as heterogeneidades entre todas as universidades no Brasil são um obstáculo para a avaliação, e, por isso, propõe, por paus e por pedras, a produzir indicadores que garantam, seja lá como for, a homogeneidade de nós todos, destruindo assim aquilo que nos é o mais precioso.”

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