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A CRISE NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS - Marilena Chauí

Texto de Marilena Chauí, evento realizado na UERJ em 03/04/2017: A CRISE NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS.

“Desde o seu surgimento no séc. XII europeu a universidade foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições num princípio de diferenciação que lhe confere, autonomia perante a outras instituições sociais e estruturada por coordenamento, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da ideia de autonomia do saber, em face da religião e do Estado, portanto na ideia de um conhecimento guiado pela sua própria lógica e necessidades inerentes a ele, tanto do ponto de vista da sua invenção ou descoberta, como do ponto de vista da sua transmissão, por isso mesmo a universidade europeia tornou-se inseparável das ideias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da Educação e da Cultura como direitos dos cidadãos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da ideia de democracia e democratização do saber, seja para realizar essa ideia, seja para opor-se a ela. A instituição universitária não pode furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora, nem pode furtar-se a responder afirmativa e negativamente ao ideal socialista. Hoje, porém, a universidade passou a ser encarada como uma organização social, que é o termo usado também para o Estado. É o termo neoliberal para as instituições públicas e para o Estado. Uma organização social, que significa passar da condição de instituição social a de uma organização social, antes de mais nada significa pensar em uma instituição a partir da ideia e da prática da administração, que é o que ocorre no Estado. O Estado como prática de poder e usado como eficácia administrativa, de acordo com as leis de mercado. Como mostrou a Escola de Frankfurt a ideia de administração é inseparável do modo de produção capitalista, como produção de equivalentes para o mercado. O capitalismo estabeleceu uma mercadoria como equivalente universal que serve para avaliar o valor de todas as outras mercadorias, o dinheiro, generalizador da troca de equivalentes. A universalização dos equivalentes faz com que tudo esteja equivalente a tudo, que cada equivalente possa ser considerado como homogêneo a qualquer outro. Essa homogeneidade permite o aparecimento da ideia e da prática da administração como um conjunto de regras e princípios formais idênticos para todas as instituições sociais, do Estado à Escola. Assim, não há diferença entre administrar uma montadora de veículos, um shopping center, um Estado e uma universidade. É a administração, portanto, que transforma uma instituição social em uma organização. Ora, uma organização difere de uma instituição porque ela se define por uma outra prática social, ou seja, pela sua instrumentalidade, e essa instrumentalidade está referida a um conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo no particular. Ela não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento interno e externo, legitimidade interna e externa, que são os focos da instituição social, da instituição universitária, mas ela é definida e marcada por operações que são definidas como estratégias baseadas pelas ideias de eficácia e de sucesso, no emprego de determinados meios para alcançar um objetivo particular que a define. Uma organização é regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Que são os termos que se passa a aplicar ao Estado também, e que aplica a nós. Não lhe compete discutir ou questionar a sua própria existência, sua função, o seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que fará a instituição social universitária é uma discussão crucial, é para uma organização um dado de fato. A organização sabe, ou julga saber, por que ela existe, para que ela existe, e onde ela existe. A instituição social aspira pela universalidade, a organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem da sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e a sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares, ou seja, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade, quer imaginária, quer desejável, que lhe permita responder às contradições que são impostas pela divisão social, ou pela divisão política. Ao contrário, a organização pretende gerir o seu espaço e o seu tempo particulares aceitando como um dado bruto a sua inserção num dos pólos da divisão social e política, e o seu alvo não é responder às contradições, e sim vencer a competição dos seus supostos iguais. Numa palavra a instituição está orientada para o espaço público, a organização está determinada pela privatização dos conhecimentos. Como foi possível passar da ideia da universidade como instituição social a sua definição como uma organização prestadora de serviços. A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizam a identidade de classe e as formas da luta de classes, de tal maneira que a sociedade parece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares. As ações naturais e ações humanas se tornam abstratamente um ambiente ou um meio ambiente instável e fluido permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material, por isso a permanência de uma organização depende muito pouco da sua estrutura interna e muito mais de sua capacidade de se adaptar velozmente às mudanças rápidas da superfície do meio ambiente, de onde o interesse que uma organização traz pela ideia de flexibilidade. A flexibilidade indica a capacidade adaptativa às mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo, ela não alcança a ordem social e a ordem simbólica onde está a universidade. Ela faz parte do mundo animal, a organização. Ou seja, nisso tudo onde nós estamos é o mundo animal. Sem o charme. No Brasil a passagem da universidade da condição de instituição a de organização inseriu-se na mudança geral da sociedade sob os efeitos do neoliberalismo, portanto o encolhimento do espaço público, do poder e dos direitos, e o alargamento dos espaços privados e dos direitos do mercado. Essa mudança, iniciada com a ditadura, consolidada no final dos anos 90 com os governos de Fernando Henrique Cardoso, retorna agora, embora os governos de Lula e Dilma tenham tentado recuperar o sentido da universidade pública como instituição social. Entretanto, o processo de sua transformação numa organização já havia sido consolidado pelos próprios dirigentes universitários que o impuseram como se fosse um movimento natural e uma necessidade histórica da sociedade. O que eu quero dizer é que mesmo que se tenha lutado durante alguns anos contra esse modelo, ele se implantou, porque os dirigentes dentro da universidade queriam que ela fosse uma organização, flexível, competitiva, eficaz, produtiva. Não veio como uma imposição de fora, foi desejada aqui dentro. Então, nós poderíamos dizer que a mudança da universidade pública brasileira ocorreu em 3 fases sucessivas. A primeira, anterior ao neoliberalismo, e as 2 seguintes já sob o modelo neoliberal. A primeira fase durante a ditadura de 64 a 80 ela se tornou a universidade funcional, voltada para a formação rápida de profissionais requisitados como mão de obra altamente qualificada para o mercado de trabalho, adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou seus currículos, os seus programas, e as suas atividades para garantir a inserção profissional de seus estudantes num mercado de trabalho onde se separava cada vez mais a docência e a pesquisa. Ou seja, essa primeira exigência feita pela ditadura se desenrolou na primeira reforma universitária que foi feita, da qual nós somos ainda herdeiros e muitas coisas, por exemplo, a ideia de créditos, de disciplinas obrigatórias, de disciplinas optativas, tudo isso veio da reforma funcional feita pela ditadura. Na segunda fase, durante a Nova República, 85 a 94, a universidade se transformou em universidade de resultados, isto é, sem preocupação com a qualidade da docência e voltada para a pesquisa em conformidade com as ideias de eficácia, produtividade e competitividade, adotando assim o modelo do mercado para determinar a qualidade e a quantidade das pesquisas. E finalmente na última fase, de 94 a 2002, e agora novamente ela se consolidou como universidade operacional, entendi como uma organização social, e portanto, voltada para si mesma enquanto estrutura de gestão e arbitragem de contratos. Como opera a universidade operacional? Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias de programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos, definida e estruturada por normas e padrões administrativos, inteiramente alheios ao conhecimento, à formação intelectual, à pesquisa, ela está pulverizada em micro organizações que ininterruptamente ocupam os seus docentes e curvam os seus estudantes às exigências exteriores ao trabalho do conhecimento. A universidade operacional opera com o aumento insano das horas aula, a diminuição do tempo para os mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade das publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, voltada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde o umbigo se encontra, a universidade operacional opera, e por isso mesmo, não age. Não surpreende então que nesse operar coopere para sua contínua desmoralização pública e sua contínua degradação interna. O que se entende por docência e pesquisa na universidade operacional produtiva, flexível, bem administrada, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos consignados em manuais de fácil leitura pelos estudantes, de preferência ricos em ilustrações e com duplicatas eletrônicas, graças às novas tecnologias. O recrutamento dos professores costuma ser feito sem se levar em consideração se dominam ou não o campo dos conhecimentos da sua disciplina, e as relações com as outras áreas, o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor porque se dedica a algo muito especializado que interessar a alguma empresa, ou porque não tenho vocação para pesquisa, ele aceita ser escorchado por contratos de trabalho temporários, precários que são chamados de flexíveis. A docência é pensada como uma habilitação rápida para graduados que precisam entrar rapidamente no mercado de trabalho, do ser do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis, e em segundo lugar ele é uma correia de transmissão entre pesquisadores e o treinamento de novos pesquisadores. A docência se reduz à transmissão e ao adestramento. Desapareceu a sua marca essencial, a formação. A desvalorização da docência não significou a desvalorização da pesquisa. A fragmentação econômica social e política, imposta sob a nova forma de capitalismo, a ela corresponde uma ideologia auto nomeada pós moderna. Essa nomenclatura pretende marcar a ruptura com as ideias clássicas ilustradas que fizeram a modernidade. Para ser ideologia, a razão, a verdade, a história, são mitos totalitários, o espaço e o tempo uma sucessão efêmera e volátil de imagens velozes. O espaço se reduz à compressão de lugares e o tempo à compressão de instantes, sem passado, sem futuro, ou seja nós estamos imersos na realidade virtual, que apaga todo contato com espaço e tempo, enquanto estrutura do mundo e estrutura da percepção. A subjetividade não é vista como reflexão, e sim como intimidade narcísica, a ser exibida na forma da celebridade. A objetividade não é o conhecimento do exterior e do diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias em jogos de linguagem e para vitórias numa competição. O que há ser a pesquisa, enquanto a razão, a verdade, a história são tidos por mitos. O espaço e o tempo se tornaram superfícies achatadas de sucessão de imagens. O pensamento e a linguagem se tornaram jogos, construções contingentes cujo valor é apenas estratégico. Numa organização, uma pesquisa, com muitas aspas, é uma estratégica de intervenção e de controle de meios e instrumentos para confecção de um objetivo delimitado. Em outras palavras, numa organização uma pesquisa é um survey de problemas, de dificuldades, de obstáculos, para realização de um objetivo, e um cálculo de meios para realização de soluções parciais e locais para problemas parciais e locais. Pesquisa numa organização não é o conhecimento de alguma coisa, não é uma reflexão crítica sobre alguma coisa, é posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para o pensamento, não há tempo para reflexão, não há tempo para crítica, os exames de conhecimentos constituídos, a sua mudança, a sua superação, é por isso que numa organização você faz mestrado em 1 ano e doutorado em 2 anos. Numa organização a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida no jogo estratégico da competição de mercado a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problema e dificuldades sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro problemas, sobre os quais o controle parece cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevivência da organização se torna real e propõe a especialização como estratégia principal e entende como pesquisa a delimitação estratégica que um campo de intervenção e controle. Eu vou lhes dar um exemplo, no Instituto Politécnico da USP, Escola de Engenharia, uma moça fez uma tese de doutorado cujo objeto era “Quais são os percursos mais racionais e mais rápidos para os caminhões de distribuição da Coca-Cola?” Porque numa organização é isso que você faz. Você não faz pesquisa, você faz survey de problemas que precisam de uma solução eficaz, acessível, rápida, produtiva, etc… É isso que você faz. Então você entra, transfere, você pensa uma universidade como organização, o que vira a pesquisa? A pesquisa vira isso. Ela deixa de ser conhecimento, indagação, reflexão, crítica, inovação, ela se torna a solução estratégica para um problema delimitado que precisa de uma solução flexível, produtiva. É isso. Em suma, se por pesquisa nós entendermos que a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com instituído, descoberta, invenção, criação, se por pesquisa entendermos como o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que é que não foi pensado e nem foi dito, se por pesquisa nós entendermos uma visão compreensiva de totalidade e de sínteses abertas, que suscitam a interrogação e a busca, e por pesquisa entendermos uma ação civilizatória, contra a barbárie social e política, então é evidente que não pode haver pesquisa numa universidade operacional. O paradoxo consiste em que a universidade como lugar onde todas as coisas se transformam em objeto de conhecimento não consegue a colocar-se a si mesma como objeto do seu conhecimento e inventar os procedimentos para uma pesquisa a respeito de si mesma. Diante da universidade, os cientistas e os pesquisadores parecem tomados pela ignorância e pela perplexidade, como se estivessem diante de um fenômeno opaco e incompreensível. Como consequência a universidade não me parece capaz de criar os seus próprios indicadores e passa a usar um indicador que tem sentido nas empresas mas que não pode ter qualquer sentido para a docência e para a pesquisa. Que critério é esse? A produtividade que é própria das organizações. Como consequência os resultados da avaliação universitária tem sido com relação ao autoconhecimento da universidade, quase nada é conseguido na medida em que lugar de uma interpretação de dados qualitativos e quantitativos propostos pela universidade a avaliação oferece um catálogo ao qual é acrescentado um conjunto de conceitos abstratos: bom, sofrível, regular, mal, como se um catálogo pudesse atividades oferecesse as informações necessárias para interpretação e permitisse que essa última fizesse uma auto avaliação da universidade. Relatórios obtidos não se distinguem de listas telefônicas, e com menos utilidade do que essas. Eu costumo dizer que o Lattes é o seguinte: eu cuspo de manhã registro no Lattes, eu soluço de tarde, registro no Lattes e eu vomito de noite, registro no Lattes. É o que é isso o Lattes. O Lattes é coisa nenhuma, pois o critério de formulação do Lattes não foi o critério para uma instituição universitária, e sim para uma organização social, de mercado. E finalmente com relação à especificidade da ação universitária. Qual é a especificidade? Qual é o bem mais preciso da universidade? Ser uma instituição social constituída por diferenças internas que correspondem às diferenças sociais, às divisões sociais, às diferenças dos seus sujeitos e dos seus objetos de trabalho, cada qual com uma lógica própria de docência, de pesquisa e de inserção no mundo. Ao contrário das empresas, que por força da lógica do mercado, operam com entidades homogêneas para as quais os mesmos padrões, qualidade, velocidade de produção, velocidade de informação e de distribuição das tarefas da organização da planta industrial, modernização dos recursos, informatização e conexão com o sistema mundial de comunicação são os padrões. No caso da universidade não são esses os padrões, além dos critérios não poderem ser homogêneos, não poderem ser os mesmos, que a produção industrial e a prestação de serviços pós industrial peculiaridades e riqueza da instituição universitária são justamente na ausência de homogeneidade, pois os seus sujeitos, os seus objetos de trabalho são diferentes regidos por lógicas, práticas e finalidades diferentes. As avaliações em curso abandonam esse bem e essa especificidade da universidade e em lugar de valorizar as diferenças, a heterogeneidade, as avaliações consideram que as diferenças, heterogeneidades, de todas as universidades do Brasil são um obstáculo para a avaliação, e por isso, propõe, por paus e por pedras, a produzir indicadores que garantam, seja lá como for, a homogeneidade de nós todos, destruindo assim o que nos é mais precioso.”

(transcrição de áudio, 2023)



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